Apresentação
O RAIO, O SOL
Gilberto Mendonça Teles*
Não sei se os românticos brasileiros tiveram tempo de se importar com o circo e com o palhaço, temas da ordem do outro, distante do eu que dominava o sentido do discurso literário da época. É certo que a poesia de Álvares de Azevedo, explorando a ironia e o humorismo da própria literatura, aproximou-se bastante da contradição entre a máscara que ri e, ao mesmo tempo, oculta a face angustiada. O poeta romântico fechava-se (ou então se abria, tanto faz) no círculo de sua própria máscara, numa porção de plano — num sofisma — iluminado pela descoberta que se fazia de si mesmo. Às vezes, de maneira genial.
Sei que, no fim do século, depois que Lewis Carroll já havia atravessado o espelho e construído a lógica perfeita do absurdo e do nonsense com Alice no país das maravilhas, Machado de Assis já pendurava uma idéia no trapézio que balançava no cérebro de Brás Cubas; e Cruz e Sousa já falava em Arlequim, comparava o soneto a um Polichinelo e, num poema fortemente humorístico e sarcástico, atinge o paroxismo da zombaria ao empregar vários sinônimos de palhaços, levando-os a desfilar nos pomposos alexandrinos de uma original e corajosa "Marche aux flambeaux", espécie de manifesto antiparnasiano, a que a crítica infelizmente nunca deu a devida atenção.
Creio que depois da publicação do Arlecchino, de Soffice, em 1914, o tema (e o termo) vão aparecer em As máscaras, de Menotti del Picchia, em 1917, e vão modernizar-se e enriquecer semanticamente com A paulicéia desvairada, de Mário de Andrade, em 1922. O próprio Mário, num dos contos de Belasartes, põe em cena a vida de um circo, retomada, de maneira mágica, em Os dragões, de Murilo Rubião, em 1965.
E agora aqui estamos diante de uma linguagem alucinada, mascarada e travestida de todas as acrobacias experimentais — o livro de Clarice Abdalla, O circo, melhor, A palhaça, que é como ele se chamou inicialmente, em forma de poema, quando foi apreciado por Alceu Amoroso Lima. A jornalista, de 20 anos, entrevistando o grande pensador (e fundador da PUC-RJ, hoje um tanto esquecido), ousou dizer-lhe que fazia literatura. Alceu pediu que ela lesse um texto. Ouviu-a calado e exclamou no final: "Termine o livro, menina, que eu o prefaciarei". Surpresa com a oferta, a repórter saiu de lá fazendo piruetas de alegria no seu sonho de escrever, de terminar logo o livro imaginado, que aqui está. Mas Alceu já não está mais entre nós.
Professora do Departamento de Comunicação da PUC-RJ, Clarice Abdalla nos apresenta um livro aparentemente difícil e, por isso mesmo, fascinante, incapaz de se entregar logo na primeira leitura, exigindo do leitor paciência, pertinácia, desassombro e, por que não?, um constante exercício de imaginação. Se não é fácil enquadrá-lo num gênero ou tipo (poesia, prosa poética, prosa de ficção, teatro, o que quer que seja), percebe-se logo que ele se enquadra perfeitamente em si mesmo, na sua estrutura, o seu desenvolvimento (numerado) e na sua linguagem que, por sua vez, ora se mascara de fundas indagações filosóficas, ora parece flutuar na superfície, deslizando-se pelas suas inúmeras e não sei se bem sucedidas exclamações onomatopaicas, letras maiúsculas, algarismos, mágicas, os signos mais diversos, como se quisesse fazer do seu livro o lugar privilegiado do encontro de todos os processos de significação. O que não deixa, afinal, de constituir uma ousadia bem sucedida, uma vez que a voz de um eu — de uma palhaça — vai costurando os "episódios" numa unidade mais mentalizada que visível. E todo o jogo onomatopaico exige do leitor entonações diversas e registro de vozes que se alternam entre a leitura silenciosa e a leitura em voz alta, declamativa, para um respeitável público, esse que apenas ouve e vê no círculo do circo, mas que também pode ler nas linhas e entrelinhas.
A "personagem-narradora" do livro de Clarice não chega a atravessar o espelho da realidade nem se fecha num sonho, como em Alice no país das maravilhas: gira em torno de si mesma, como uma bailarina em rodopio, no plano do circo, numa contínua representação de papéis que se situam numa mesma pauta, mas em ritmo diferenciado em cada página. O seu sonho se resolve no próprio discurso, sem mudança de tempo e de espaço. Mas O circo de Clarice Abdalla tem também alguma semelhança com "As enfibraturas do Ipiranga", com que Mário de Andrade fecha a sua Paulicéia desvairada, com a diferença de que em Mário há o sentido de um oratório, com as personagens agrupadas em torno de temas da tradição e da modernidade.
Não chega a haver um pacto ficcional no texto de Clarice Abdalla: o leitor não sai de um espaço real para entrar num outro, imaginário ou absurdo. O seu circo está iluminado por um círculo de luz — um raio, um sol — que não deixa sombras, mas que tenta continuamente subverter a realidade, distorcendo-a, representando-a às avessas, enfim, transformando-a num espaço de esperança social e cristã.
Bastam alguns exemplos isolados e sem maiores comentários para se ver que o seu texto "inclassificável" aponta mais fortemente para o poético, como nos versos iniciais de "Zero":
Sou o logos em meditação.
O espetáculo que avança as noites
em blues e em brincadeiras infantis.
Ou como no número 2, na afirmação consciente da "intuição sem sombras do fenômeno", embora se diga, lógica e analogicamente: "Transcendo a precisão da Lógica. / Sou eu música das minhas entranhas". Ou, ainda, no número 10, onde os versos se tornam mais longos e se deixam penetrar de belíssimas imagens, como:
Jejuo o meu corpo e deixo impermeabilizar-se em mim
o Espírito de Deus. A sua voz absoluta. O eterno.
O livro se fecha com a afirmação de uma metalinguagem sentenciosa e com uma abertura imaginária que põem em xeque o sentido egocêntrico que porventura se tenha insinuado na minha leitura inicial:
A poesia sobreleva a matéria. Trago vocês à Era Palhaciana.
Não sozinha..., mas com todos os que estão aqui no circo.
Quero a Paz. Afastar de nós a vaidade.
O destaque autoritário do meu monólogo.
O compasso com que se foi traçando a linha do círculo chega ao seu finício [assim mesmo], ao seu ponto final / inicial ou, como nos versos que inspiraram T.S.Eliot, "In my end is my beginning". Os mesmos versos do início aparecem ligeiramente modificados na sua disposição final, tal como na estrutura assimétrica que Lévi-Strauss percebeu nas narrativas míticas: Sou o logos em meditação./ O espetáculo que avança as noites em blues / e em brincadeiras infantis".
Tem-se, a partir daí, a inauguração do eterno retorno da Era Palhaciana. O círculo se faz circo e este se faz a máscara que carnavaliza a vida e os acontecimentos para a alegria geral de todos nós, crianças com uma cruz vermelha na testa, atrás do palhaço, cantando: "O raio, o sol / suspende a lua: / olha o palhaço / que está na rua". Mas o palhaço o que é?
Rio de Janeiro, 9.9.99.
* Poeta, crítico e professor-titular do Departamento de Letras da PUC-RJ.
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