O OLHO DE ALDEBARAN
Autor: Volmer S. do Rego
Gênero: Ficção Científica
Num. páginas: 250
Versão Digital: R$ 13,20
Versão Impressa: R$ 26,40
 
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Continho Despretensioso


Esse cara não pára de escrever! Disse um. É, mas é só besteira! Outro. Bom, e alguém no mundo já escreveu coisa que preste!? Perguntavam todos, a si mesmos, convencidos que eram os melhores. Não que naquele clube desconsiderassem Joice, de Assis, Malarmé, tidos e havidos por quantos podiam exercitar a mente com diabruras lexicográficas como mestres inexcedíveis. Mas eram esses os comentários gerais entre todos os que o conheciam e aos seus textos, embora, como demonstravam a falácia e a inveja, tivessem lá alguma pouca serventia aqueles excertos literários.

O que não sabiam na verdade, e que ele guardava em segredo, era que aquela atividade, a de escrever, era considerada divina, desenvolvida e prevista há muito tempo atrás, na inocência da humanidade, mesmo antes dos homens tomarem ciência de que escrever era só um desenhar de idéias e de encadeamentos cuidadosos, de umas com as outras, a fim de transmitir ou confundir idéias, não importando se eram boas ou más, ou de quem as tivesse tido; mesmo porque esta coisa de bem e mal só apareceu muito tempo depois nas traduções das bíblias gregas pelos padres católicos do século XII, quando escrever já era um ato cansado e não sabia, enrustidos sob os auspícios da santa madre igreja reformista das idéias platônicas e aristotélicas e na cabeça de um tal de Maniqueu que acabou dando seu nome a uma prática perniciosa de dividir joio de trigo à revelia de uma razão mais acurada, demonstração inequívoca da qualidade autopromocional de tal atividade intelectual. Aliás, é bom que se diga, não há atividade intelectual com outro fim, senão o de provar erudição, conhecimento ou geniosidade de quem a pratica, moeda de pouca monta em paragens como a nossa. É como um esporte, e às vezes pode até ajudar alguém de alguma forma, ao dar um bom exemplo, ser utilizada pelo teatro e promover catarses positivas, essas coisas que o espírito humano soube tão bem inventar para passar o tempo e fugir às caldas do inferno da inação ou do ócio improdutivo. Os mais bem dotados entram para o elenco restrito dos ditos imortais, o que nos leva a crer na necessidade de um cripta espaçosa o suficiente para contê-los, todos bem acomodados, sem ter de se importunarem uns aos outros com suas costelas pontudas e suas emanações sulfurosas, vivos ou não, já que a briga é egóica e imensa. Alguns países criaram clubes, academias, câmaras, lugares aonde ninguém que domine tão frenético esporte quer ter seu nome inscrito ou cadeira cativa, e no qual pululam todas as intenções, das mais nobres às mais esdrúxulas, menos a de fazer boa literatura ou cultivar belas letras e artes.

Deveriam naquela época, os que quisessem escrever ou aplicar-se nas artes de desenhar idéias, que só com o passar de muito tempo e depois de muitas tentativas e erros puderam ser compreendidas, e só a partir daí serem transpostas como tais, para só depois receberem o nome de palavras, e frases ao conjunto destas, tomar invejável cuidado para que o encadeamento e as regras que se foram desenvolvendo com o passar dos anos, a bem regê-las, fossem bem aplicadas e nunca quebradas. Chegar ao ponto de ter de submetê-las a análises mais criteriosas, o que geralmente causava espécie, requeria considerável dose de tempo e caprichos, já que este joguete tem o poder de ecoar no vácuo da consciência humana quando provida de técnica apurada, suficientemente bem colocada e dirigida com precisão balística, carregada de intecionalidades nem sempre lídimas contra um alvo incauto.

Escritos antigos relatam, e aqui peço permissão para desfilar as inventivas de um homem atormentado por elas, as agruras de um rei mortificado por um fato assaz curioso e cujas conseqüências não são menos intrigantes. Soberano de uma grande nação , vivia este homem, intelectual de porte ativo e dinâmico e louvável estatura ética, mas de moral duvidosa, às turras com uma crise insolúvel de falta de memória reinante entre seus mensageiros, que viviam perdidos entre os incontáveis caminhos de tão soberbo rincão, sofrendo de costumeiros esquecimentos das mensagens reais transmitidas aos governadores das distantes províncias esparramadas pelos quatro pontos da estrela cardeal. Era grande o reino, grande também a responsabilidade do monarca, e muitas as suas leis e despachos. De tal monta eram seus éditos e em profusão tal seus expeditos que os mensageiros com freqüência os perdiam na memória, exatamente por terem de cobrir grandes distâncias com assoberbado volume de títulos e informes a serem protocolados. Não havia santa, mágica ou erva curativa suficiente no reino para resolver tal crise.

Via-se, assim, o rei avexado e apoquentando-se freqüentemente com as falhas de informação, estrutura de sustentação comprovada de sua base parlamentar de apoio sem a qual tudo poderia ser em vão, vitimando e deixando ao léu seu reino querido e suas incontáveis riquezas e possibilidades. Conclamou então ministros e sábios reais, gaudérios incorrigíveis, para um convescote num belo fim de tarde, daqueles só possíveis em reinados distantes, perdidos no tempo e no espaço, e por isso mesmo só acessíveis ao imaginário popular dos séculos atuais graças aos mecanismos eletrônicos do cinema e seus efeitos especiais, com a finalidade precípua e perspícua de resolverem o problema que o afligia. Exortou-os à ácida tarefa, não sem antes, porém, adverti-los que a todos um castigo severo recairia caso não apontassem solução coerente.

Em sua preleção, antecedida por desfile orgulhoso de dançarinas belíssimas, um luxo ornamental só concebido em laboratórios de marketing, assim se dirigiu o rei ao seu séquito cortesão: _ "Senhores ministros, sábios e conselheiros reais, pares de Brisal ( esse era o nome do reino distante ), estou deveras preocupado com o andamento das ordens expedidas aos meus governadores auxiliares transportadas pelos mensageiros reais. Eis que elas não chegam ao seu destino, ou quando isso ocorre, ou lá chegam pela metade, devido a falta de memória de meus homens ou lá chegam desprovidas de senso, verdadeiro arrazoado de idéias, uma mixórdia. De sorte que minhas leis não se cumprem, impostos não são cobrados devidamente, mal e porcamente se redistribuem as benesses que meu reinado produz e propicia, e ato contínuo, extensão natural do processo, instaura-se sob meu régio nariz e sob o cetro real uma bandalheira generalizada. Sem falar nas histórias maravilhosas que caem no esquecimento apenas porque não há no mundo quem as consiga guardar e reter na memória em número superior a dez, quiçá transmiti-las. Assim, eu vos pergunto, ó fina flor do conhecimento nacional, o quanto de nossas riquezas culturais, nós que somos de um pluralismo racial encantador, quanto de nossas belezas e da " majestosidade" de nossos cantos e contos já não perdemos? Quanta sabedoria dos antigos nos chegaram? Quase nada, respondo" Meio histérico e visivelmente emocionado com a questão, bufando como só a realeza é capaz de bufar, este déspota esclarecido ultimou: _ "Resume-se o problema em algumas frases. Não é possível enviar mensagens a lugares distantes sem que estas cheguem distorcidas ou até nem cheguem. Quero que apontem, sábios de Brisal, solução para tal problema, sem a qual estaremos nós, elite incontestável do reino e a nação como um todo, submersos em pouco tempo em verdadeiro caos, lodaçal nadificante e irreversível, e..., nem preciso lhes dizer..., e aqui fez o rei uma pequena pausa, à maneira dos filmes de suspense do mestre Hitchcock, onde qual câmera subjetiva, seus olhos percorrem toda a audiência estupefacta...,_vossos cargos estarão ameaçados senhores. Destarte, quero uma pronta solução e que ela possa ser passada para os filhos dos filhos de nossos netos e mais até. E a quero já. Tenho dito!

E tendo dito, deu as costas e saiu sem cerimônias, que não é de se espantar tais rompantes em se tratando de reis e gentes que tais, retirando-se diretamente aos aposentos reais, para os quais suas esposas já se tinham dirigido e o aguardavam ansiosas para resolver questões de foro íntimo que não nos cabe aqui comentar por uma posição de , convenhamos, subalterno respeito. Desnecessário também dizer que urgência naquelas questões reais era no mínimo maneira de atrasar o clamor das palavras do rei e diminuir-lhes o valor. O reino e algumas cabeças estavam em jogo. Assim, de cabelo em pé, vimos nossa manada de inteligências-mor em pavorosa circunstância , a lidar com um enorme problema aparentemente insolúvel, mas certamente capaz de demandar quantidade não menos expressiva de neurônios, suores e calafrios.

Ora, consideremos. A nata intelectual do reino, supra-sumo econômico e financeiro nacional, nababos e oligarcas bem estabelecidos há muito, o que não significa sabedoria ou coisa do tipo, deparara-se com algo tão estrondoso e assustador quanto a soma dos recursos do tesouro real que estavam acostumados a consumir mensalmente. Leais, nem todos, apesar de tudo ( essa era uma qualidade em voga na época), atônitos e aflitos – já estas qualidades comuns, atemporais, livres de preconceitos, modismos ou posições políticas -puseram-se todos, alto e baixo clero, mal o soberano virara-lhe às costas, a raciocinar glamorosamente como nunca antes fizeram, intentando aliviar as aflições reais, e quiçá, dar melhor destino à própria sorte e à situação de cada um, agora e pela primeira vez por um fio, pois o problema era real, e cá entre nós, quem está acostumado aos problemas de Estado sabe muito bem quando a barca ruma incontinente aos rochedos. Algumas horas depois de inúmeros cálculos e cabriolas aritiméticas, sem as quais e para as quais seus negócios particulares deveriam derivar, sim, pois para cada solução apontada havia algumas empresas envolvidas, por acaso, sempre por acaso pertencentes a alguns dos sábios, ministros e conselheiros ali presentes, depois de muita parolagem de efeito discursivo, pose de ocupados, principalmente na frente dos ouvidores reais de plantão, adjuntos costumeiramente àquelas circunstâncias, puderam perceber a magnitude do problema proposto e decidiram reunir-se em conselho deliberativo mais a noitinha, depois do banho e do jantar, sem o que não seria possível continuar, dadas as disposições e posições díspares seguidas por cada qual na busca da solução única e salvadora, à fome e à preguiça, envoltórios naturais em tais gentes da política.
 
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