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"Quando somos crianças na Cidade do Rio de Janeiro, parte de nossas fantasias infantis nos coloca numa cidade mágica. Não é difícil imaginar que alguma princesa das Mil e Uma Noites resida no castelo mourisco da FIOCRUZ; ou torturar nossa imaginação, tentando saber o que aconteceu com o Rei que morava no demolido Palácio Monroe.
Então crescemos e descobrimos que a realidade é muito mais complexa do que a fantasia. A história nos fala do Hospital dos Pobres e de outros poderes reais nesta cidade."
"Os trabalhos de FOUCAULT (1972; 1987; 1989), GOFFMAN (1992) e MACHADO (1979) nos mostram como os asilos foram instrumentos privilegiados da construção e manutenção da ordem social urbana.
A partir de uma perspectiva de análise desenvolvida por LUZ (1979) e MACHADO (1979), em que as conjunturas institucionais se sucedem, a proposta deste estudo é investigar as transformações institucionais do Hospital Escola São Francisco de Assis, ao longo de sua existência secular; de asilo (1876) a hospital universitário (1990).
Acreditamos que a instituição represente o que poderíamos chamar de 'exemplo vivo' das políticas de assistência social e saúde, do II Império (1876) ao alvorecer do "Brasil Novo" (1990); abrigando características próprias da singularidade de sua trajetória e, ao mesmo tempo, das transformações das políticas sociais do país."
"A pobreza e a miséria urbanas há muito se constituíam num verdadeiro 'problema de polícia', fazendo da cidade do Rio de Janeiro um lugar de perigosas agitações e crimes. Nas palavras do Marquês de Lavradio, o criador da polícia, 'a ociosidade é fator de perigo urbano: ela cria interstícios por onde penetram a vadiagem e a desordem'."
"Localização e organização interna foram os grandes pilares sobre os quais assentaram-se as normas para a implantação - e reforma - dos grandes estabelecimentos: o hospital, o quartel, as escolas, a prisão, o bordel, as fábricas, o hospício e o asilo.
O planejamento urbano, ordenador da nova sociedade, visava impedir a propagação dos males das aglomerações. Arquitetura, história, estatística, geografia, lógica e demografia, foram utilizados, pelo médicos, para produzir as normas que orientaram a construção da Casa de Correcção, no Catumbi (1833); do novo Hospital da Misericórdia (1838-54); do primeiro cemitério fora dos muros da cidade, na Ponta do Calafate (atual bairro do Caju, em 1839); a presença médica nas escolas, ditando as normas morais e a reorganização dos quartéis."
"Assim foi criado o Asylo da Mendicidade que, juntando-se à reforma prevista para outros grandes estabelecimentos, supriria a necessidade social de amparo aos rejeitados. Velhos, mendicantes; e todos os outros que ainda não tinham lugar nos hospitais, na prisão, no hospício ou no cemitério.
O Asylo da Mendicidade nasceu como fruto das pressões por um lugar para abrigar os desvalidos. Entretanto, não era um simples asilo, mas um instrumento de intervenção médica na sociedade do final do século XIX. Aí está consumado mais do que o espírito humanitário de socorro aos pobres. Prioritariamente, uma instituição total, que combinava as bases do princípio de exclusão, herdado da Idade Média; acrescido de novos esquemas disciplinares, muito mais eficazes."
"Em 1918, a pandemia 'gripe espanhola', que assolara a Europa, atingiu a Cidade do Rio de Janeiro; causando um elevado número de mortes. Ao lado desta, a permanência de outras 'doenças tropicais', com destaque para a febre amarela, e o 'terrível flagelo da tuberculose', denunciavam a ineficiência dos serviços públicos; clamando por uma reforma que pudesse dar continuidade e aprofundar os trabalho de modernização, embelezamento e higiene, que estavam em andamento na capital da nação."
"Eleito e empossado, o Presidente Epitácio Pessoa iniciou a implementação de uma reforma sanitária que viesse a atacar os problemas do saneamento, que havia sido ponto de destaque em sua plataforma de governo.
Seus primeiros passos neste sentido foram a nomeação de Carlos Chagas para o recém-criado Departamento Nacional de Saúde Pública, o DNSP, e o envio ao Congresso de mensagem que contemplava as principais reivindicações do movimento sanitarista. Carlos Chagas, que havia retornado, recentemente, dos Estados Unidos, onde concluíra o curso de Especialização em Saúde Pública, na Universidade John Hopkins - Philadelphia, iniciou a implantação de um modelo inspirado nas experiências que tinha visto, juntamente com outros sanitaristas da América Latina, nos Estados Unidos."
"Com a autorização conseguida ao Congresso Nacional para que o Presidente construísse ou adaptasse edifícios públicos para 'o estabelecimento de hospitais e pavilhões que, provisórios, mas, imediatamente, alojem 400 enfermos', a escolha de Chagas recaiu sobre o Asylo São Francisco de Assis; o que foi imediatamente acertado com a Prefeitura do Distrito Federal, proprietária do prédio, e então responsabilizada pela desativação do Asylo e pelas obras de adaptação do edifício."
"Ao final da década de 40, o Hospital Geral São Francisco de Assis era um dos grandes hospitais da Cidade do Rio de Janeiro. Suas arquiteturas física e organizacional, especializadas, atendiam ao modelo das clínicas e serviços; já envolvidos com a produção e reprodução do saber médico. Era uma grande instituição de assistência aos indigentes, conforme explicita o seu regulamento; ou seja, para aqueles que estavam de fora do sistema de previdência, que se tornava hegemônico no panorama institucional da assistência médica, aos trabalhadores urbanos."
"Em 1946, o Hospital foi adquirido, da Prefeitura do Distrito Federal, pela União, e entregue à Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ), mantendo-se, como campo de ensino, à Escola de Enfermagem Anna Nery e às outras unidades universitárias; especialmente, à Faculdade Nacional de Medicina."
"A escola médica, que se estabeleceu no Hospital Geral, transformou-o em Hospital Escola e deu locus à várias cátedras que, anteriormente, se encontravam dispersas em vários pontos da cidade, em serviços organizados pelos próprios catedráticos; em geral, nos grandes hospitais públicos, como a Santa Casa de Misericórdia; o Hospital dos Servidores do Estado e o Hospital de Clínicas Gaffrée e Guinle, por exemplo.
Todavia, nos anos 50, um novo modelo de escola médica introduziu a necessidade da pesquisa no ensino e prática médico-hospitalares. Começaram a se tornar intensas as críticas às contradições e defasagem na formação através das cátedras que, entretanto, se mantiveram como locus de poder muito forte, até a Reforma Universitária de 1968."
"A instalação de algumas clínicas no Hospital Geral, e sua transformação em Hospital Escola, já não atendiam às necessidades do ensino médico, que estava em transição, retomando a luta pelo moderno Hospital Universitário, na Ilha do Fundão, inaugurado em 1978; o que levaria à desativação do agora considerado “Velho São Francisco”.
"Após a desativação, uma luta pela defesa do conjunto arquitetônico da Praça Onze foi empreendida por um jornal e pela Escola de Enfermagem Anna Nery, que obtiveram o tombamento do complexo em março de 1978."
"As águas de março, para fecharem o verão de 1988, chegaram mais cedo. Na última semana do mês de fevereiro, a Cidade do Rio de Janeiro, mais uma vez, foi atingida por temporais; que determinaram a decretação de estado de calamidade pública pela Prefeitura, tendo visto os enormes prejuízos causados pela intempérie: desabamentos e mortes.
A Campanha SOS Rio, deslanchada pelo esforço de mobilização de vários órgãos públicos em auxílio à Defesa Civil do Estado do Rio de Janeiro, mobilizou também a UFRJ que, a partir do dia 21 de fevereiro, começou a se articular para participar do esforço comum de defesa da população e socorro das comunidades atingidas.
Entre os eventos mais dramáticos daqueles dias, o desabamento da Clínica Santa Genoveva, na encosta do bairro de Santa Teresa, causou grande impacto nos meios de comunicação, principalmente pelo fato de ser um abrigo de idosos e doentes; em geral sem referências familiares.
A Escola de Enfermagem Anna Nery realizou uma reunião do corpo social, em 22 de fevereiro, em seu Pavilhão de Aulas; com o objetivo de discutir e traçar estratégias de socorro às vítimas das enchentes. Nesta reunião, relataram-se as iniciativas da UFRJ e, em meio às discussões, surgiu a idéia de ocupação do HESFA e suas dificuldades, 'uma vez que o prédio encontrava-se abandonado e depredado, sem água, luz, etc.' Entretanto, 'a ocupação seria, além de ajuda humanitária, também uma forma de pressionar a Universidade a fazer os reparos no mesmo'. A reunião tomou caráter de assembléia decisiva, determinando que a Escola deveria participar da campanha, ocupar o HESFA, iniciar os trabalhos de divulgação na imprensa, limpeza e composição de grupos de trabalho, através de recrutamento de voluntários liderados por uma comissão coordenadora, aprovada ao final da reunião.
Os trabalhos iniciaram-se imediatamente com o preparo do prédio e o recrutamento de voluntários entre os alunos e professores da EEAN, profissionais da UFRJ, de outros órgãos públicos e mesmo alheios a estes. A chegada dos primeiro doentes reabria o HESFA, cerca de dez anos depois de sua desativação. Curiosamente, para uma clientela muito semelhante àquela que determinou a abertura de suas portas pela primeira vez, ainda como Asylo da Mendicidade. Mais de cem anos depois, os velhos e desamparados batiam às suas portas, em condições muito semelhantes àquelas que determinaram sua criação."
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