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Um pouco de História
Nos tempos em que os romanos dominavam a Espanha, Tiago, filho de Zebedeu, irmão de João, também apóstolo, primo de Jesus, resolveu pregar em terras distantes. Sua presença foi constatada na Espanha, precisamente em localidades como Valência, Zaragoza e Galícia. Em seguida, retornou a Jerusalém, não vivendo muito tempo, sendo perseguido e morto no ano de 44, na Palestina, por Herodes, rei da Judéia. É o único dos apóstolos cujo martírio está descrito no Novo Testamento.
Seu corpo, decapitado, foi abandonado, como era costume na época, se fazer com os perseguidos religiosos. Seus discípulos teriam recolhido seus restos mortais, trasladando-os de Jerusalém para Jaifa, por terra. Depois, em uma pequena embarcação, pelo Mediterrâneo. Cruzaram o estreito de Gibraltar e, pelo Atlântico, teriam chegado à Galícia. Subiram o rio Ulla e, sem um determinado ponto da margem direita, amarraram a embarcação em uma grande pedra, em torno da qual surgiu um vila com o nome de Santiago de Padrón. Mais tarde, seguindo uma calçada romana, chegaram a uma colina, onde depositaram os restos mortais do apóstolo.
Surgiram muitas lendas envolvendo o Santo-Apóstolo:
Um noivo comemorava suas bodas em companhia de amigos, cavalgando à beira do mar, quando, de repente e para espanto dos presentes, o cavalo disparou em direção ao mar, até desaparecer por completo. Logo depois, cavaleiro e cavalo retornaram, e bem vivos, completamente cobertos de conchas. Tal fato teria acontecido no momento em que a embarcação com os restos mortais do Apóstolo, passava pelo lugar. E há quem diga que isto ocorreu em costas lusitanas.
Conta-se que a Espanha, em 711, foi invadida pelo exército muçulmano que, em pouco tempo, ocupou quase a totalidade do território espanhol. Quando os cristãos venciam batalhas, que eram inúmeras na ocasião, os resultados eram sempre atribuídos a intervenções divinas. Também a Santiago se delegava a existência de milagres, o povo se achando eleito por Deus. Ainda sobre batalhas, que gerou a mais famosa das lendas, falava-se que Santiago aparecia em defesa do povo cristão, montado em um forte cavalo e trajando um suntuoso uniforme de guerra. O povo passou a chamá-lo de o mata-mouros.
Conta-se, ainda, que, no ano de 813, um indivíduo conhecido pelo nome de Pelayo se estabeleceu, por acaso, em um lugar onde havia uma construção romana e outra visigoda, ambas cobertas por camadas de argila. Desse lugar, o ermitão observou uma chuva de estrelas que caiu sobre um determinado ponto. Ele interpretou o fato como uma mensagem divina. No local, descobriu um sepulcro cujos restos mortais pertenceriam a Santiago. O lugar foi chamado de Compostela, que significa Campo de Estrelas, e deu origem à cidade de Santiago de Compostela.
A história sobre a catedral surgiu paralelamente ao crescimento da cidade. Primeiro, teria sido construído um mausoléu sobre a colina; depois, um monastério, e, em 829, uma igreja, à volta dos quais nasceu Compostela, por ordem do Rei Alfonso II, o Casto, ao tomar conhecimento dos restos mortais do Apóstolo. A igreja foi destruída, muitos anos depois, durante uma invasão muçulmana, que arrasou completamente a cidade. A catedral foi incendiada em 1117 no bojo de uma revolta popular.
Cinqüenta anos mais tarde, Alfonso III construiu uma basílica no mesmo lugar e reergueu a cidade, rodeando-a de muralhas. Em 1708, Alfonso VI, um dos grandes protetores do Caminho de Santiago, iniciou as obras da atual catedral, começando pela capela de São Salvador, que ficou pronta em 1128.
A catedral continuou crescendo até o século XVIII, quando atingiu os 98 metros de altura que hoje ostenta. Alfonso II já havia apadrinhado o Apóstolo, delegando-lhe o título de Patrono da Espanha, por uma necessidade política. Maquiavel explica bem tais necessidades políticas, na sua clássica obra O Príncipe.
Oficialmente, o corpo de Santiago passou a ser venerado no Campo das Estrelas – a cidade de pedra – que, na Idade Média, transformou-se num importante centro econômico e cultural.
Foi a partir do ano de 840 que surgiram os primeiros grupos de peregrinos, com muitas e muitas histórias até os dias atuais e que deverão continuar até o fim dos tempos.
Curiosamente, naquela época, só se procurava ir a Roma. Quem fazia este caminho era chamado de romeiro. À Terra Santa, Jerusalém, iam os palmeiros. A partir de então, quem seguia o caminho de Compostela passou a ser chamado de peregrino. Hoje, a palavra peregrino é universal. Até aqueles que vão a Meca, há quem os chame de peregrinos, o que constitui um ledo engano.
As peregrinações de forma mais intensa aconteceram em 1126. O itinerário era cheio de detalhes. Falava-se na existência de um grande número de hospitais especialmente para o atendimento de peregrinos. Diversas situações desagradáveis foram registradas, tais como: mortes naturais, mortes em decorrência de saques, enfermidades diversas e uma variedade imensa de escritos sobre o comportamento dos peregrinos. Tais escritos receberam o nome de Codex Calixtino, em homenagem ao seu criador, o Papa Calixto II. Foram registradas, a princípio, 13 etapas: Jaca e Viscaret, Monreal e Pamplona, Puente de la Reina e Estella, Nájera, Burgos, Frómista, Sahagún, León, Rabanal del Camino, Villafranca del Bierzo, Triacastela, Palas de Rey e, finalmente, Santiago.
Em 1985, Santiago de Compostela foi considerada pela Unesco, Patrimônio da Humanidade. O Caminho Real Francês, devido ao grande número de peregrinos vindos da França, tem ainda um título muito importante: o de Primeiro Itinerário Cultural Europeu.
As rotas são muitas e se estendem por quase toda a Europa. Os espanhóis continuam sendo os pioneiros, seguidos pelos franceses e belgas. O continente americano também tem uma presença marcante, com destaque especial para os brasileiros, representados por paulistas, cariocas, mineiros, gaúchos e, mais recentemente, pelos nordestinos. Os homens são maioria e a chamada terceira idade tem uma presença bem significativa, girando em torno de 10%. Jovens até 30 anos formam a liderança estatística.
A credencial de Peregrino vale como um documento de identidade. Com ela se tem acesso livre nos inúmeros albergues. Pode ser adquirida em todas as cidades e povoados do Caminho nas igrejas, prefeituras, alguns hotéis e pousadas e em Associações de Amigos do Caminho. Em Santiago, por ocasião da chegada, recebe-se a Compostellae, que é um certificado de reconhecimento. Para se ter direito a ele, é necessário que se percorra, no mínimo, cem quilômetros, das seguintes formas: a pé, a cavalo ou de bicicleta.
É impossível passar pelo Caminho sem pensar na História. Assim, outros fatos históricos e curiosidades estarão presentes no decorrer deste relato.
“O Caminho de Santiago foi, durante séculos, um caminho de conversão e de extraordinário testemunho de fé.” (João Paulo II aos jovens, em 1989).
O início: setembro de 1993 – Penúltimo Ano Santo do Milênio
Em 1993, estava passando meus últimos dias de férias em Madri, após ter conhecido várias outras cidades espanholas, como Córdoba, Sevilla, Granada e Barcelona. Ao buscar as fotos que havia mandado revelar no dia anterior, vejo junto uma revista com reportagens diversas e muita propaganda de filmes e outros produtos fotográficos. A capa era sobre a cidade de Santiago de Compostela. Ainda no balcão da loja, comecei a folhear a revista e logo fiquei interessado pela reportagem sobre essa cidade. O pensamento não poderia ser outro: pegaria um trem até Compostela, apesar do pouco tempo que me restava. Antes de chegar ao hostal (tipo de hotel apenas com serviço de quarto, por isso, com diárias bem mais baratas), passei por uma agência de turismo e solicitei as informações necessárias. No dia seguinte, às vinte e três horas, estava embarcando num confortável vagão-leito rumo a Compostela, onde pretendia permanecer somente um dia e meio. Minha passagem de volta ao Brasil já estava confirmada e teria que retornar ao trabalho no mesmo dia da chegada. O trem, completamente lotado, deixou a estação na hora certa.
Às seis horas da manhã, tempo nublado e bastante frio, desembarquei em Santiago. Dei início a uma caminhada pelas enladeiradas ruas, em busca de hospedagem, sem imaginar que encontraria tantas dificuldades, pois não conseguia hospedagem de espécie alguma. Todos os hotéis, hostais e pensões estavam lotados. Uma forte garoa começou a cair e eu já me sentia cansado de tanto andar de um lado a outro, sem resultado. Comecei a ficar desanimado e cheguei a pensar em voltar naquele mesmo dia, já que, por sorte, havia um trem que saía às treze horas para Madri, o único do dia. A procura durou cerca de duas horas. Por fim, fui bater em mais um hostal. Toquei a campainha e logo me atendeu uma voz feminina, que parecia ser de uma senhora. Novamente insucesso. Não havia vaga, mas, desesperado, insisti, para ver se comovia a desconhecida senhora. Deu certo! Ela me disse para subir.
O hostal ficava no terceiro andar de um edifício bem antigo e sem elevador. Enquanto percorria as barulhentas escadas de madeira, ia pensando, e de forma preconceituosa, naquela situação, que me incomodava desde o início da busca. Por que a primeira pergunta era sobre meu país de origem e, quando dizia que era brasileiro, a resposta era sempre: “Sinto muito, está lotado”, ou algo parecido? A senhora abriu a porta e, com a mão firme na maçaneta, esperava do lado de dentro. Era uma figura bem engraçada: baixinha, gorduchinha e muito branca. Estava de camisola cor de rosa, com um casaco marrom sobre os ombros, e chinelos também cor de rosa, com bolinhas nas pontas. A cabeça coberta por um lenço muito fino, revelava enorme quantidade de rolinhos de plástico, muito usados pelas mulheres para enrolar os cabelos. Demonstrou-me, contudo, simpatia, com seu sorriso manchado de batom. Pegou o telefone, daqueles antigos, e ligou para seus conhecidos. Primeira ligação, sem sucesso. Segunda, idem. Na terceira, pareceu-me que a resposta do outro lado foi “esse brasileiro já esteve aqui.” Ela insistiu com seu interlocutor, dizendo achar que eu era uma pessoa honesta. Pelo menos foi o que entendi. É claro que me senti humilhado, mas a necessária humildade se fez presente. Foi só atravessar a rua novamente e me encontrava no hostal que havia me recusado minutos antes. Tudo bem, pelo menos não teria que voltar às treze horas daquele mesmo dia, sentindo o desalento da frustração.
Cansado da procura, e como a chuva havia resolvido cair de vez, acomodei-me no quarto, que era tão pobre quanto a cabeça do dono. Dormir um pouco foi a pedida, na esperança de que o tempo pudesse melhorar. No início da tarde, resolvi sair das cobertas. Fazia frio e a chuva caía sem piedade.
De guarda-chuva, segui em direção à parte antiga da cidade, seu lado histórico, a duas quadras do hostal, onde havia grande movimento. Arrumar local para almoçar foi a primeira providência. Enquanto almoçava, a chuva parou. Dei, então, início a um passeio por uma cidade toda construída em pedras: ruas, edifícios e monumentos. Fui parar na Praça do Obradoiro, o principal ponto histórico, sede da imponente catedral. Era uma confusão de gente que surgia de todos os cantos, porém com uma direção: a catedral. Dirigi-me também à sua entrada principal, na intenção de seguir aquela gente, mas estanquei do lado de fora, porque não cabia o mais magro dos humanos lá dentro. Tentei as entradas laterais, que ficam, respectivamente, nas praças da Imaculada e da Quintana. Novamente, sem a mínima chance de penetrar no recinto. E ninguém saía! Havia missa. O que consegui foi sentir o cheiro de incenso e ouvir o som dos cânticos. Continuei o meu passeio, na promessa de voltar no dia seguinte, mais cedo, e não poderia ser diferente, já que teria que retornar a Madri às treze horas.
No dia seguinte, apesar da insistência da chuva, retornei à Praça do Obradoiro. Novamente fiquei observando o vai-e-vem daquela gente, bem vestida e com os mais diversos agasalhos, inclusive peles de animais. Tive a impressão de que, como tudo foi construído à base de pedra, o frio parecia ser mais intenso. Entrar na catedral? Mais uma tentativa frustrada. Restou-me acompanhar o movimento. Em meio àquela elegância de inverno surgiam umas figuras estranhas, que se destacavam pela também estranha indumentária. Os calçados: botas, tênis ou sandálias, sempre sujos de terra. Carregavam mochilas nas costas, que pareciam pesadas, pelo volume. Lenços amarrados nas cabeças, chapéus ou bonés. Quase todos usavam um cajado. Alguns, ornamentados na ponta com uma moringa vegetal ou uma concha, que aparecia presa também na mochila de alguns deles ou em volta do pescoço de outros. O certo é que todos a possuíam. Alguns se curvavam diante da catedral, permanecendo por um tempo na mesma posição, e, ao que parecia, rezavam. Outros beijavam o chão. Havia quem caminhasse de joelhos e até subisse as escadas de acesso à porta principal. Vi um com uma vestimenta de padre franciscano, com todos os demais apetrechos. Pensei: são beatos! Depois fiquei sabendo que aquela gente estranha tinha um nome: peregrino.
Quem ficar de frente para a catedral poderá observar, à esquerda, uma rua sinuosa. Dela surgiam grupos e mais grupos. Segui em direção àquela rua, em contramão, sem conseguir deixar de esbarrar em diversas pessoas. Quase na esquina da praça, um grande cartaz anunciava as atrações musicais para os próximos dias. Dentre tantas, duas conhecidas e imperdíveis para mim: José Carreras e Mercedes Sosa. Fiquei com muita vontade de vê-los.
Aquela festa tinha um significado: era o Ano Jacobeu (Xacobeo), o Ano Santo Compostelano de 1993, final do mês de setembro. O Ano Jacobeu foi instituído em 1119, pelo Papa Calixto II, o mesmo do Codex Calixtino, e ratificado em 1179 pelo Papa Alejandro III, tendo, assim, se estabelecido de forma definitiva. A festa de Santiago é comemorada no dia 25 de julho (não se sabe se esse foi o dia de seu nascimento, morte, de quando os restos mortais do Apóstolo foram encontrados ou de quando chegaram à colina). Sempre que este dia cair num Domingo, será Ano Santo. O evento tem uma periodicidade de 6, 5, 6 e 11 anos. O próximo Ano Santo e o último do século e do milênio acontecerá em 1999. O primeiro do século XXI será em 2004 e o último, em 2094. Até o momento, foram comemorados 116 eventos. Dois Anos Santos foram extraordinariamente comemorados, quando o dia do Apóstolo não coincidiu com um Domingo: quando do redescobrimento dos restos mortais de Santiago, no século passado, e em 1937, por ocasião da Guerra Civil Espanhola.
A Porta do Perdão, localizada no lado direito da catedral, também chamada de Porta Santa, representa um monumento de extraordinária beleza arquitetônica. Dizem que todos os caminhos terminam nela. Em 31 de dezembro de 1998, pela tarde, um ato simbólico de abertura da Porta, pelo arcebispo de Santiago, deu início a um novo Ano Santo. Um ano de perdão, indulgência e renovação para todos aqueles que, como peregrinos, cheguem até Compostela. |